Encontro em prosa e verso: Jorge de Souza Araujo

A Editora Via Litterarum – Via entrevista a o poeta, escritor, ensaísta  e professor JORGE DE SOUZA ARAUJO, abordando algumas questões com vistas à compreensão acerca do ato de escrever e sobre a criação literária propriamente dita.


SOBRE O ATO DE ESCREVER

VIA – Como e em que momento ou circunstância se percebeu como LEITOR e que a leitura faria parte de sua vida?

JSA – Primeiro, acho fundamental esclarecer que a leitura não se faz tão somente  a partir de signos gráficos, mas também  de imagens do mundo em volta. Li uma gravura na contracapa de um caderno escolar que me impressionou para sempre, ainda na primeira infância. Dois jumentos disputando um monte de capim me incutiram a marca da solidariedade cúmplice e da comunhão de partilhas. Os poucos recursos de uma escola municipal, num município sem livros, e os raros estímulos me chegaram quase acidentalmente. Mas me recordo do fascínio dos livros, ainda que de forma muito rarefeita e incipiente: Li a vida de São Jorge e de um certo Percy Inn, de que não me lembro títulos e autores. Li fotonovelas, poucas revistas em quadrinhos, a revista O CRUZEIRO – que integrava todo o país como uma central única de notícias do Brasil e do mundo. Mas ouvi muito a Rádio Nacional do Rio de Janeiro (que era a Rede Globo dos anos 50), radionovelas de aventuras e mistério (Jerônimo, o Herói do Sertão, O Anjo), programas de variedades como A Lira de Xopotó, que irradiava encantos com suas marchas e dobrados filarmônicos. Cedo migrei para o gosto de narrativas e terminei lendo tudo o que me chegava aos sentidos, até mais tarde descobrir o que mais me encantaria nos livros, e que se resumiria, na adolescência, em toda a obra de José de Alencar.

VIA – Como e em que momento ou circunstância se percebeu como CRIADOR LITERÁRIO ou AUTOR e que escrever faria parte de sua vida?

JSA – Descobri cedo o gosto de encenar, imitando quadros radiofônicos, escrevendo malrimados poemas, incursionando pelo jornalismo impresso no velho semanário SB (Sul da Bahia), onde comecei publicando um conto (ou crônica) intitulado(a) Dona Filó, a vizinha, levado pelo imaginário ficcional mais descabelado e por um amadorismo ingênuo e idealista que ainda hoje, em certo sentido, me acompanha, ao lado de descobertas de que o mais legítimo no ato de escrever é inscrever-se criticamente no mais revolto dos mundos, revisitar autores e obras que me repercutem outras instâncias de saber e sabor de humanidade feitos, além do prazer de novos compartilhamentos e descobertas.

VIA – Hoje, em termos de ocupação do tempo dedicado ao trabalho, qual o espaço ocupado pela literatura?

JSA – Hoje, dedico todo o meu tempo à escrita e à leitura. E, mesmo quando me exercito em outras ocupações, estou escrevendo sempre.

VIA – Alguns autores escrevem como uma necessidade existencial. Se fosse possível resumir a motivação principal do porquê escreve, qual seria?

JSA – Disse, certa vez, num livro meu de que muito gosto, que “escrevo para me sentir vivo”, parceiro de uma existencialidade visceralmente a descoberto de dissimimulações ou temores, testemunhando um mundo disperso, vazio de sentidos humanistas. Mas me preservo devotado ao universo da ética que promova a plenitude da cidadania livre de imposturas.

(Nota do editor 1: Essa obra é Letra, leitor e Leituras; Reflexões, editado pela Via Litterarum)

VIA – No período de um dia, qual seria a rotina enquanto escritor?

JSA – Dedico integralmente todas as madrugadas e manhãs a escrever, ler e anotar. As tardes e noites reservo ao sono, ao entretenimento, à contemplação de estrelas e da lua cheia ou crescente, às expectativas do que me resta a sonhar e produzir novos encantamentos.

VIA – Como fica a relação entre INSPIRAÇÃO e REELABORAÇÃO DO TEXTO ESCRITO na sua criação literária?

JSA – Não acredito em mimar a Inspiração como uma obtusa dama a quem devemos favores especiais ditados pelo espontaneísmo mais extemporâneo. Ao momento inspirado, costumo adicionar a autocrítica, a transfiguração, o artesanato, a depuração que decante a palavra e a torne insubstituível, sem que dela se perca o encanto, a ternura, a afeição. A escritura é fenômeno de construção de linguagens e deve permanentemente refletir o indivíduo humano também em construção.
 

SOBRE A CRIAÇÃO LITERÁRIA

VIA – Seguramente, todo escritor é antes um leitor. Enquanto leitor, qual autor (ou autores) e qual obra (ou obras) considera mais relevante para ser o escritor que é?

JSA – Variou o gosto com a maturação do tempo, mas, de um modo geral, ainda sou fiel a Tolstoi e Dostoiésvski, Alencar, Machado e Manuel Antonio de Almeida, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Aníbal Machado, Jorge Amado, Clarice Lispector, Cecília, Drumond, Cabral, mas sobretudo Jorge de Lima. Ainda me curvo a Camões, Sá de Miranda, António Ferreira, Dante, Petrarca, trovadores medievais, os poetas do repente e do cordel, os fabulistas das linguagens, assim como os românticos Varela, Castro Alves, Junqueira Freire e Sousândrade…

VIA – Da primeira publicação até hoje, quantas obras possui?

JSA – Em livro, cerca de 42, contando com segundas e até terceiras edições de alguns. Em artigos e publicações em conferências, o número passa de cem.

VIA – Que obra considera a principal?

JSA – Todas as minhas obras são principais.

VIA – Em qual gênero literário se situaria a parte principal de sua criação literária e que experiências possui em relação aos outros gêneros literários?

JSA – Hoje, excepcionalmente, voltei ao exercício da poesia, da ficção e do memorialismo amoroso. A grande maioria é de obras de ensaio, a que venho me dedicando nos últimos anos.

VIA – Quando escreve ficção, ao iniciar, a narrativa está praticamente pronta ou essa tem vida própria, surpreendendo o próprio autor, só se conhecendo o enredo e o fecho no próprio processo de criação?

JSA – Fico com a segunda hipótese, a de work in progress, obra em contínuo processo de construção, alterável conforme a natureza que a criação vai requerendo em sua permanente autonomia.

VIA – Como vê a literatura em tempos de Internet, redes digitais, ChatGPT e outros aplicativos de Inteligência Artificial?

JSA – Sem qualquer orgulho ou modelo de esquivança, não me sinto apto a responder a esta pergunta, dinossauro jurássico completamente ignaro em matéria de efabulação cibernética. Ainda escrevo à mão, o que complemento em máquina de escrever daquelas antigas, a velha Olivetti, que não mais existe e nem dela se guarda memória… Humildemente, sei que me ocupo de coisas difusas de nosso sofrido universo analógico…

(Nota do editor 2, a título de testemunho: entreguei há pouco mais de uma semana a Jorge as perguntas numa folha de papel, hoje, 8 de outubro de 2023, apanhei um envelope com as respostas e aqui estou transcrendo-as para o meio digital a fim de postá-las na página da Via).

VIA – Qual o maior problema para a poesia e a ficção, em uma palavra, para a literatura hoje?

JSA – A divulgação, distribuição e circulação de livros, o que o desaparecimento dos suplementos literários ajudou a contribuir para a queda e o provável desaparecimento de leitores.

VIA – Em qual (ou quais) projeto(s) literário(s) está se dedicando no momento?

JSA – Trabalho atualmente em dois romances, um livro de poesia e outro de memória sentimental.

Ilhéus, outubro de 2023.

 

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