A editora Via Litterarum-VIA, entrevista o poeta e escritor Samuel Leandro Oliveira de Mattos, abordando algumas questões com vistas à compreensão acerca do ato de escrever e sobre a criação literária propriamente dita.
SOBRE O ATO DE ESCREVER
VIA – Como e em que momento ou circunstância se percebeu como LEITOR e que a leitura faria parte de sua vida?
SM – Na infância e pré-adolescência, tinha preguiça pra ler… Só pensava em andar de bicicleta e me divertir com atividades mais físicas e “aeróbicas”. Só comecei a ler mesmo quando tinha uns 16 anos, através da coleção “Para Gostar de Ler, da Ática Editora”, com crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade. Foi um presente de minha irmã, mais velha, Rebeca, que sempre leu muito. Gostei tanto que, mais tarde, adquiri todos os volumes… incluindo o de poesias, que tinha poemas de Cecília Meireles e Vinicius de Moraes… A partir de então, vi-me leitor, com um certo prazer. Entendi também que a literatura era (e é) algo importante em minha vida. Foi uma grande descoberta…
VIA – Como e em que momento ou circunstância se percebeu como CRIADOR LITERÁRIO ou AUTOR e que escrever faria parte de sua vida?
SM – Lendo Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga… percebi que eu também poderia escrever daquela forma ou poderia compor versos semelhantes… Comecei, então, a imitar e talvez até a “plagiar” versos… e a escrever esboços semelhantes de crônicas e contos sobre o meu dia-a-dia… Isso, então, foi fruto das leituras da coleção Para Gostar de Ler…
Mais tarde, através da música popular, particularmente por influências de compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Toquinho, Vinicius de Moraes, dentre outros muitos, comecei a perceber a relação da música com a literatura, teatro e cinema. Percebi que as linguagens artísticas se interseccionam. Então, percebi-me como artista também, que poderia perfeitamente compor versos num poema, versos para uma música de amigos compositores, escrever uma crônica etc.
No final das contas, tornei-me poeta, a princípio, e, depois, romancista. Inclusive, tenho deixado de lado a poesia, como sendo arte do início da juventude, e tenho abraçado o romance, como um desafio da maturidade. No romance, pois, exercito mais técnica em redigir, para envolver o leitor, sem prescindir das estruturas poéticas, no texto em prosa.
Desconfio que, doravante, o romance me seja o trabalho mais importante…
VIA – Hoje, em termos de ocupação do tempo dedicado ao trabalho, qual o espaço ocupado pela literatura?
SM – Infelizmente, a lida de professor, que ministra aulas, que orienta estudantes, que analisa outros trabalhos literários e sobre estes emite parecer, que participa de reuniões de departamento e de colegiados de curso etc. toma muito tempo… de modo que a produção literária tem ficado para segundo plano. Mesmo assim, continuo a escrever, cada vez mais demandando mais tempo…, tentando otimizar o tempo e “tirando leite das pedras”, rumo à realização e o prazer que a literatura proporciona, até o dia, sonhado, em que eu me possa a esta dedicar mais tempo “sem compromisso, sem relógio e sem patrão”, como rezam os versos de Chico Buarque, na canção “Meu Refrão (1966)”.
VIA – Alguns autores escrevem como uma necessidade existencial. Se fosse possível resumir a motivação principal do porquê escrever, qual seria?
SM – É difícil responder a esta questão… Eu, pessoalmente, não sei porque escrevo, mas sei que escrever é uma necessidade. Acordo no meio da noite com ideias, com textos pré-prontos… e preciso escrevê-los, antes que eu os esqueça… No meio do dia, vêm-me textos que preciso escrever… Parece ser algo inexplicável. A criação artística, literária, é uma intuição que vem e demanda a escrita. Depois de ter-se o texto escrito, vem a fase de burilar o texto… trabalhá-lo, refiná-lo de modo a tornar-se esteticamente mais interessante… É um processo às vezes interminável… Eu, geralmente, escrevo o texto. Guardo-o. Esqueço-o. A ele retorno… encontro-o inconcluso, não agradável, não a contento… Revivo-o, reescrevo-o, transformo-o em outra coisa… até que o meu eu leitor diga que o texto está bom. Somente então eu o considero pronto. É um processo interessante em que o criador é também o crítico, rigoroso, do seu próprio trabalho… Confesso que, às vezes, penso que, para além da motivação, parece haver uma compulsória predeterminação para a escrita.
VIA – No período de um dia, qual seria a rotina enquanto escritor?
SM – Não há rotina. A intuição artística se manifesta, independentemente de qualquer coisa. O texto pode surgir numa madrugada, ao meio dia, durante o café da manhã, no trabalho…. e quando isso ocorre, é preciso parar o que se faz e escrever… nem que seja só um esboço da ideia, para retomá-la depois… Noutras vezes, planejo acordar cedo e escrever, o que pode funcionar ou não. Posso acordar disposto, escrever por horas e iniciar o dia com a sensação de boa produtividade artística. Noutras vezes, planejo isso, mas não funciona. Começo a escrever e me surge um impasse… algo que me faz parar. Então, deixo o texto lá no computador, à minha espera, e vou fazer outra coisa. Inclusive, além das atividades de esposo e pai, faço trabalhos manuais com madeira, cuido da manutenção da casa, às vezes sou eu mesmo eletricista, encanador, pedreiro, engenheiro, arquiteto, um faz tudo. Como disse Antônio Carlos Jobim, no documentário “A Casa do Tom” (2019), dirigido por Ana Jobim, “Sou um síndico de mim próprio”. Observo que o compositor Paulinho da Viola é assim também. Ele faz móveis para a casa, reforma tudo, conserta carros antigos…
VIA – Como fica a relação entre INSPIRAÇÃO e REELABORAÇÃO DO TEXTO ESCRITO na sua criação literária?
SM – Na poesia, a inspiração chega de repente. Aí, então, compõe-se o verso, brutamente… Depois, porém, já enquanto leitor e artista, o verso passa a ser paulatinamente burilado, pensando-se nos outros leitores… No final, os versos são reescritos e refeitos de modo a trabalhar-se sobretudo o ritmo de cada verso, de cada estrofe, do poema como um todo….
No romance, prevalece a técnica de escrever e reescrever, pensando no leitor. São muitas histórias em uma… mas, no meu caso, primo pelo parágrafo curto, para não cansar o leitor. No romance, o leitor é o deus maior… O desafio é dizer muito em poucas palavras e escrever parágrafos breves… Acho que aprendi isso lendo Graciliano Ramos, um mestre dos parágrafos curtos. Ele não usava nenhuma vírgula sem necessidade… nenhuma palavra que não fosse extremamente importante na frase… Dizia muito, com poucas palavras. Por outro lado, tudo era muito bem pontuado. O leitor de Graciliano lê por horas a fio e não se cansa: “Quantos anos teria? Ignorava, mas certamente envelhecia e fraquejava. Se possuísse espelhos, veria rugas e cabelos brancos. Arruinado, um caco. Não sentira a transformação, mas estava-se acabando” – Fragmento de Vidas Secas (1938).
Em suma, na poesia, creio na inspiração, precedida da burilação. No texto em prosa, creio na inspiração e na memória (que armazena os assuntos que se pretende inserir no livro), seguidas da técnica de escritura, que é também uma arte.
SOBRE A CRIAÇÃO LITERÁRIA
VIA – Seguramente, todo escritor é antes um leitor. Enquanto leitor, qual autor (ou autores) e qual obra (ou obras) considera mais relevante para ser o escritor que é?
SM – a) Graciliano Ramos: Vidas Secas, São Bernardo;
- b)Jorge Amado: Mar Morto, Bahia de Todos os Santos, Tocaia Grande;
- c)Carlos Drummond de Andrade: Poemas diversos;
- d)Cecília Meireles: Poemas diversos;
- e)Vinicius de Moraes: Poemas e letras de música popular.
VIA – Da primeira publicação até hoje, quantas obras possui?
SM – 04 (quatro).
VIA – Qual obra considera a principal?
SM – Romance biográfico: Apolônio, o multiplicador. 3ª Edição Revista e Ampliada. Ilhéus. EDITUS, 2018.
VIA – Em qual gênero literário se situaria a parte principal de sua criação literária e que experiências possui em relação aos outros gêneros literários?
SM – Primeiramente, poesia. A obra mais importante nesse gênero é “Música na Rua e Outros Poemas. 2ª Edição. Ilhéus. EDITUS, 2014.
Na prosa, o romance biográfico: Apolônio, o multiplicador. 3ª Edição Revista e Ampliada. Ilhéus. EDITUS, 2018.
Quanto a outros gêneros, gosto de ler roteiros de filmes, roteiro de peças teatrais, letras de músicas que são feitas para personagens de teatro ou cinema, textos encenados no palco… Gosto dessa interação entre as linguagens artísticas. Talvez, por isso, eu goste tanto de assistir a filmes que se baseiam em romances. É uma forma de analisar o mesmo texto dentro de outra linguagem. A obra deixada por Dorival Caymmi, no campo das artes plásticas, é o retrato do que compôs musicalmente. Algumas de suas músicas são também adaptações de trechos de romances de Jorge Amado… que, por sua vez, inspirou xilogravuras de Calasans Neto e pinturas de Carybé. As artes de fato dialogam entre si e acho isso tudo muitíssimo interessante. A propósito, fiquei muito contente quando ouvi, do cineasta Victor Aziz, que o romance Apolônio, o multiplicador, é quase um roteiro de filme e que daria um longa-metragem.
VIA – Quando escreve ficção, ao iniciar, a narrativa está praticamente pronta ou essa tem vida própria, surpreendendo o próprio autor, só se conhecendo o enredo e o fecho no próprio processo de criação?
SM – A ficção se mistura com narrativas outras, pré-existentes, de modo que, ao final, é difícil saber o que foi descrito, transcrito ou ficcionalmente criado. No romance Apolônio, por exemplo, gravei entrevistas, ouvi pessoas, escrevi o que me disseram… Porém, reescrevi tais textos com base em histórias outras, letras de música popular, contos, crônicas que tinham afinidade temática com tais textos… misturei a história do personagem com coisas da vida dos compositores Luiz Gonzaga e João do Vale, por exemplo… expressões idiomáticas e populares do semiárido brasileiro, trazidas ao Sul da Bahia… No final, obtive um mar de coisas que resolvi definir o conteúdo como sendo isso ou aquilo…. sempre pensando no leitor… no que o leitor gostaria mais… Por exemplo, o próprio Apolônio me disse que, ao atravessar o Jalapão, encontrou um fazendeiro com chapéu de couro… Aí eu me lembrei de um depoimento de Luiz Gonzaga que falava de “chapéu bosta de rola”. Então, eu resolvi colocar na boca do personagem Apolônio que aquele chapéu, que ele descrevia, era “bosta de rola”. E assim ficou no livro… Então, por assim dizer, realidade e ficção se misturam…
VIA – Como vê a literatura em tempos de Internet, redes digitais, ChatGPT e outros aplicativos de Inteligência Artificial?
SM – A literatura é eterna e atemporal, independentemente de qualquer coisa. A prova disso é que o livro digital suscita vendas do livro físico, impresso em papel, contrariando todas as previsões, que afirmavam que o livro em papel estaria no fim da vida. Não importa a maneira, a fonte, o recurso, a tecnologia, o livro é eterno. E a leitura pode-se dar pelo papel, pela tela do telefone celular, pelo tablet, com interferência da inteligência artificial… não importa.
VIA – Qual o maior problema para a poesia e a ficção, em uma palavra, para a literatura hoje?
SM – Falta de promoção mercadológica. O público sempre reage favoravelmente… basta promover, divulgar.
VIA – Em qual (ou quais) projeto(s) literário(s) está se dedicando no momento?
SM – Sou presidente da Academia Grapiúna de Artes e Letras (AGRAL) e promovo eventos nos quais aprendemos e ensinamos arte, cultura, literatura. São palestras sobre temas artístico-literários, dentre outras ações afins. No momento, estamos a organizar um livro com biografias dos acadêmicos e seus respectivos patronos e patronesses.
Também coordeno o Museu-Vitrine das Artes Visuais da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Ali, são organizadas exibições de trabalhos de artistas regionais, incluindo os que também são estudantes e professores da Universidade. Não se trata de literatura, mas são expressões de linguagens artísticas, igualmente. Pretendo estreitar os laços entre o Museu e as outras artes regionais, incluindo a literatura.
Estou também a escrever um outro romance biográfico, no qual devo trabalhar pelos próximos três anos.
Prof. Me. Samuel Leandro Oliveira de Mattos
Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC
Departamento de Letras e Artes (DLA)
Coordenação do Museu Vitrine das Artes Visuais
Campus Prof. Soane Nazaré de Andrade
Pavilhão Adonias Filho, 1º andar
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