VIA LITTERARUM: Encontros Prosa e Verso com o poeta, escritor, professor e Pai de santo Ruy Póvoas – RP
A Editora Via Litterarum – Via entrevista o poeta, escritor, professor e Pai de Santo Ruy Póvoas, abordando algumas questões
com vistas à compreensão acerca do ato de escrever e sobre a criação literária propriamente dita.
SOBRE O ATO DE ESCREVER
VIA – Como e em que momento ou circunstância você se percebeu como LEITOR e que a leitura faria parte de sua vida?
RP – Veio vindo devagar. Meu pai, Agenor Póvoas, administrou isso em mim, muito bem. Desde que aprendi a ler, ele me punha em contato com livros adequados à minha faixa etária. Constantemente me trazia revistas e jornais. E desde que li O Jabuti e o gigante, incorporei o hábito da leitura. Desde então, para mim, ler é me transportar para outros universos possíveis.
VIA – Como e em que momento ou circunstância se percebeu como CRIADOR LITERÁRIO ou AUTOR e que escrever faria parte de sua vida?
RP – Começou quando me tornei ginasiano e tive aulas com o Professor de Português, Pedro Ferreira Lima. Ele nos cobrava uma redação por mês. Lia e comentava uma a uma. A primeira que eu fiz foi muito elogiada. Pronto. Estava ativado o gatilho. Mais tarde, já na Faculdade de Filosofia, fui aluno de uma professora de Literatura Portuguesa (Ela não gosta que eu conte isso, citando o nome dela. Fica parecendo que ela é das antigas), que conquistou a confiança de minha turma por sua competência e desempenho. Isso me levou a mostrar a ela uma crônica que produzi. Ela cobriu de elogios. Daí em diante, disparei e cheguei até aqui, nos dias de hoje, com alguma produção literária em prosa e verso, ensaios e artigos. Não posso omitir o nome da Professora Dinalva Melo do Nascimento em tal assunto. Ela ficou impressionada quando leu o manuscrito de Vocabulário da paixão e se empenhou em publicar o livro pela FESPI/CEPLAC. Um tempinho mais adiante, e surgiu o Professor Celso Cunha, meu orientador da tese de Mestrado (conforme se dizia naquele tempo) e tomou para si as providências para publicar o referido texto pela José Olympio, A linguagem do candomblé: níveis sociolinguísticos da integração afro-portuguesa. Tais situações me fizeram desenvolver a autoconfiança como escritor.
VIA – Hoje, em termos de ocupação do tempo dedicado ao trabalho, qual o espaço ocupado pela literatura?
RP – Já estou aposentado há uma década. Mesmo antes de me aposentar, eu tinha um projeto para continuar vivendo que excluía ir para casa para criar galinhas. Para além de dirigir um terreiro, na condição de babalorixá, dedico um tempo ao cotidiano para continuar me sentindo gente. Outra parte do tempo, para ler, mais outra para escrever. Dado que o ato de criar Literatura é compulsório, a qualquer momento do dia (exceto naqueles dedicados ao terreiro) a intuição chega e se instala inesperadamente. E eu não tenho controle algum sobre tal situação. Cumpre-me apenas escrever.
VIA – Alguns autores escrevem como uma necessidade existencial. Se fosse possível resumir a motivação principal do porquê escreve, qual seria?
RP – Não me dou conta de um único motivo, de uma alavanca que aciono para alcançar um objetivo bem delineado. Escrevo porque sei escrever e isso me é compulsório. Escrevo porque sou dado ao sonho e a utopias de um mundo melhor, mais justo, mais equilibrado. Escrevo porque creio na Arte como manifestação primorosa do espírito humano. E seguindo Ferreira Gular, porque a vida só não basta.
VIA – No período de um dia, qual seria a rotina enquanto escritor?
Digitar, reler. Reler, digitar. Parar e consultar outros livros, outras obras.
RP – Então, quando acontece a tsunami da intuição, se não houver quem me obrigue a parar de escrever, não sinto sede, nem fome, nem cansaço, nem vejo o tempo passar (se é que ele passa, pois creio que quem passa sou eu). Em tal sentido, só o terreiro pode frear o processo a qualquer momento.
VIA – Como fica a sua relação entre INSPIRAÇÃO e REELABORAÇÃO DO TEXTO ESCRITO na sua criação literária?
RP – Primeiro, escrever e escrever sem censura alguma. Na primeira lavratura, não importa a gramática nem meus saberes de professor de Língua Portuguesa. Aliás, erro muito quando escrevo. Os personagens assumem a rédea do processo e fazem o que bem querem, dizem o que querem e como querem. Muitas vezes, acontece eu discordar desse ou daquele personagem. Mas não cabe a mim corrigi-lo ou censurá-lo.
Depois, o texto é posto para descansar. Começa, então, a fase do burilamento. Vou catando as impropriedades da narrativa registrada, a configuração dos personagens, as repetições (e eu sou muito dado a repetições), as incoerências e, principalmente, o trato com a linguagem. A obra literária cobra vários níveis de equilíbrio.
SOBRE A CRIAÇÃO LITERÁRIA:
VIA – Seguramente, todo escritor é antes um leitor. Enquanto leitor, qual autor (ou autores) e qual obra (ou obras) considera mais relevante para ser o escritor que é?
RP – Um bom número. Tanto de obras quanto de escritores e escritoras. E tem mais: a pergunta me remete ao verso, à crônica, ao conto, ao romance. Para cada um desses universos, há aqueles cuja obra eu li e que me derramaram luzes sobre meu pensar, meu intuir. Principalmente sobre meu sentir. Mas também sobre meu corpo, instrumento que capta sensações. Sim, a lista seria imensa. Mas não posso deixar citar alguns. Maupassant, Gorki, Gogol, J. J. Benitez, Hemingway, Gabriel Garcia Marques, Garcia Lorca, Pablo Neruda, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Mário Vargas Llosa, Machado de Assis, Adonias Filho, Jorge Amado, Eça de Queiroz, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Valdelice Pinheiro, Fernando Pessoa, Camões, e por aí vai. Também tive atenção redobrada com meus patrícios: Jorge Araújo, Cyro de Mattos, Hélio Pólvora, Telmo Padilha, Jorge Medauar, Antônio Lopes, Sônia Coutinho, Margarida Fahel, Tica Simões, Rita Santana, Danilela Galdino, pois sou contemporâneo de sumidades das Letras grapiúnas.
VIA – Da primeira publicação até hoje, quantas obras possui?
RP – Algumas. Cerca de 23.
VIA – Qual obra considera a principal?
RP – Somos os piores juízes de nós mesmos, creio nisso. E entendo que não escrevo nem publico para mim e, sim, para possíveis leitores. Corro o risco de apontar justamente aquela que menos agradou a quem leu. Mas morro de amores por meus dois romances A viagem de Orixalá e A sombra no espelho. Ah, não esqueço também de meu livro de contos Oratório: santuário de antanho.
VIA – Em qual gênero literário se situaria a parte principal de sua criação literária e que experiências possui em relação aos outros gêneros literários?
RP – Eu não diria a principal, pois não é conveniente que hierarquizemos a produção que se quer artística. Publiquei dois livros de romance, seis de poemas (com mais dois prestes a sair); três, de contos; dois de artigos e ensaios; três, voltados para o universo da religião de matriz africana. E por aí vai. Tal se vê, trata-se de modesta produção.
VIA – Quando escreve ficção, ao iniciar a narrativa está praticamente pronta ou essa tem vida própria, surpreendendo o próprio autor, só se conhecendo o enredo e o fecho no próprio processo de criação?
RP – Primeiro, me vem aquela sensação inconfundível de que algo quer fluir através de mim, em termos de criação literária. Nunca sei previamente do que se trata. Basta me sentar em frente ao computador e as coisas vão fluindo, tal qual alguém estivesse dizendo, e eu, apenas digitando. É o meu processo para criar um romance. Atualmente, estou criando dois simultaneamente: uma consumição. Para o conto, acontece diferente. A história me surge logo pronta. Para o poema, ai, ai… Ele jorra repentinamente, pronto, acabado. Se eu não parar o que estiver fazendo e não fizer o registro, adeus! Ele se vai e não volta nunca mais, sem deixar um pedacinho sequer, me deixando no ora veja.
VIA – Como vê a literatura em tempos de Internet, redes digitais, ChatGPT e outros aplicativos de Inteligência Artificial?
RP – Faço questão de saber como funcionam e para que servem, pois quero ser participante de meu tempo. De dinossauro, basta o corpo em última idade. Me manterei fiel, no entanto, à Literatura, ao livro, à escrita, ao trabalho com a palavra. Não creio que tais ferramentas aniquilem a Literatura. Até porque, se ela é Arte, a Arte é indestrutível, pois se trata de suma criação do espírito humano em sua saga, na existência sobre a terra. Tenho acompanhado o chegar e o arquivar de tanta ferramenta, a ponto de as da Internet não me meterem medo. Creio, sinceramente, que estamos a caminho de novas criações para veicular a palavra escrita, a obra literária. A imagem holográfica é uma possibilidade. Seria acoplar o que entendemos por livro até agora e um recurso da alta tecnologia. Conforme costumo dizer, quem cá ficar verá; quem kafkar também. Pense: o livro projetado em imagem holográfica, no meio da sala, no tamanho que você desejar, e você, virando a página apenas com o olhar. Não vai molhar, nem dará mofo, nem precisará de estante. E você vai poder acessá-lo no lugar em que você estiver. Nem por isso deixará de ser livro. Basta lembrar o 14 Bis e as ultramodernas aeronaves. A espingarda e os mísseis atômicos. Ambos são armas e matam.
VIA – Qual o maior problema para a poesia e a ficçao, em uma palavra, para a literatura hoje?
RP – Em uma palavra? Misericórdia! Há uma certa dubiedade na pergunta. Mas vou escolher uma das possibilidades de interpretação semântica que ele me dá: PUBLICAR.
VIA – Em qual (ou quais) projeto literário está se dedicando no momento?
RP – Dois romances e dois livros de poemas. Por enquanto, dei um tempo à produção de artigos em ensaios.
Ruy Póvoas