Encontro em prosa e verso: Ramayana Vargens

A Editora Via Litterarum – Via entrevista o poeta, escritor, jornalista e professor Ramayana Vargens – RV* , abordando algumas questões com vistas à compreensão acerca do ato de escrever e sobre a criação literária propriamente dita.

*Nota do editor: Estas perguntas foram respondidas pelo autor, oralmente. E transcritas para serem arquivadas de forma padronizada e divulgadas.

SOBRE O ATO DE ESCREVER

VIA – Como e em que momento ou circunstância se percebeu como LEITOR e que a leitura faria parte de sua vida?

RV  – Meus pais contavam que eu, quando era bem pequenininho, de 5 para 6 anos, surpreendi meu pai na sala que ele estava lendo o jornal. De repente, eu comecei a soletrar e ler a manchete. Ninguém em casa sabia que eu já tinha aprendido a ler. E eu sempre tive um fascínio muito grande por duas coisas: pelos livros e, principalmente, pela palavra. O som das palavras me encantava sempre. Eu escutava uma palavra nova, diferente, e aquilo me atraía. Eu ficava imaginando coisas que eu nem sei exatamente o que, mas aquilo me levava para uma outra dimensão. E o contato físico com os livros era uma coisa, assim, muito boa pra mim. Meu pai tinha alguns livros; minha mãe, por exemplo, era uma casa cheia de crianças, então ela dava aquela bronca de mãe quando a gente pegava os livros: “Olha aí! Não vai rasgar! Não vai rabiscar!”. E aí o meu pai era o contrário. Meu pai, não. Ele deixava pegar. O importante é ter o contato com os livros, né? Então isso foi/é uma coisa assim: desde que eu me entendo, eu tenho essa relação.

VIA –  Como e em que momento ou circunstância se percebeu como CRIADOR LITERÁRIO ou AUTOR e que escrever faria parte de sua vida?

RV  – Na cabeceira de minha mãe tinham dois livros que são imagens bem antigas que eu tenho do quarto. Eu tinha um livro grosso, encadernação de couro, que era E o vento levou, com uma longa dedicatória escrita com uma letra floreada, que era o livro que o meu pai havia dado de presente a ela quando ela estava no início da gravidez, que enjoava muito, etc. e tal. Ela tinha o maior orgulho desse livro e da história de E o vento levou. Foi um filme também muito famoso naquela época… E o outro livro era Os 100 mais belos sonetos da língua portuguesa, também com uma encadernação de capa de couro. Pretensioso… “Os 100 mais belos…” (risos). Mas tinha esses sonetos maravilhosos e minha mãe declamava uns dois, que eram aqueles sonetos que meu pai declamava pra ela. Então eu abria, lia, … São sonetos que eu guardei a vida inteira. E é aí que eu começo o meu contato com a poesia.

Um dos sonetos era um muito famoso do Júlio Salusse, Os cisnes, que terminava assim: “um dia, um cisne morrerá por certo/Quando chegar esse momento incerto/no lago, onde talvez a água se tisne,/– que o cisne vivo, cheio de saudade/ nunca mais cante, nem sozinho nade/nem nade nunca ao lado de outro cisne.”

Eu fiquei maravilhado quando vi que o cara foi pegar uma palavra – tisne – para rimar com cisne. Eu não tinha a mínima ideia o que é que era, mas eu achava incrível essa coisa de que você pode, dentro da língua, buscar uma palavra que combine com outra palavra e que não seja uma coisa, assim, tão óbvia. Isso me fascinava. E tinha um amigo de boemias do meu pai, um cara que era letrista de música popular daquela época áurea do rádio, que fazia sucesso com os grandes cantores e tal… Ele era autor de uma música muito famosa: A deusa da minha rua. O nome desse cara era Jorge Faraj. E A deusa da minha rua dizia assim: “Espelhos da minha mágoa/meu olhos são poças d’água/ sonhando com seu olhar/ela é tão rica e eu tão pobre/eu sou plebeu, ela é nobre/não vale a pena sonhar…”. O cara foi meu primeiro orientador em cima dos versos que eu fazia.

Desde cedo, então, eu comecei a me interessar pela brincadeira com as palavras, e procurava fazer essa brincadeira da maneira mais original possível. Esse amigo de meu pai, Jorge Faraj, ele dava sempre um toque no sentido de fazer o diferente, de fugir do óbvio, tentar fazer de uma outra forma pra ver se consegue atingir uma coisa mais original.

Comecei a fazer versos muito cedo. Meus primeiros versos foram versos de amor. Eu era super apaixonado por uma coleguinha de sala de aula – acho que eu devia estar com uns 11 para 12 anos, por aí… Sara! Então, Sara, toda jeitosinha, tinha um rabo de cavalo meio alourado, só que o rabo de cavalo, ao invés de ficar assim, aqui atrás na cabeça, ficava bem aqui em cima, no cocoruto. Então parecia que ela estava carregando um penacho pequenininho. Ela balançava a cabeça toda hora, e ela me olhava com aquela indiferença. Se eu falava alguma coisa com ela, ela respondia assim…, demonstrando que não estava interessada em mim. Mas eu percebia que de longe ela ficava também querendo que eu procurasse por ela a todo momento. Eu fazia isso, e a gente ficava nesse joguinho. E eu, ao mesmo tempo, não sabia como me declarar, como conduzir a conversa para uma coisa mais amorosa. Eu queria namorar, e não sabia como era namorar. Então eu tinha medo de namorar. O fato de ela não receber a minha insistência de ficar do lado dela, de conversar com ela, querer ajudar naquelas lições que a gente fazia em conjunto e tal, ao mesmo tempo era um alívio (risos), porque se ela fosse de demonstrar alguma brecha, eu acho que iria ficar desesperado, não saberia como fazer. Mas aí foi pra Sara que eu fiz os meus primeiros versinhos, e não parei mais de fazer versos a vida inteira.

E à medida que eu ia crescendo, eu fui lendo, fui gostando de ler, fui gostando de escrever, de desenvolver um jeito de ter uma narrativa atraente, que fosse interessante para as pessoas, que elas conseguissem ler de uma forma prazerosa. Então isso sempre foi meu objetivo desde as minhas redações escolares. Colaborava nos jornalzinhos da escola, fazia poemas de ocasião, escrevia as minhas crônicas juvenis… Então, sempre foi esse o caminho.

VIA – Hoje, em termos de ocupação do tempo dedicado ao trabalho, qual o espaço ocupado pela literatura?

RV  – Eu sempre escrevi muito preocupado com o prazer estético, o prazer de estar fazendo uma coisa bonita, bem feita, mas acima de tudo, o prazer de estar comunicando. O prazer de estar passando uma mensagem. E a mensagem que eu quero passar é sempre uma mensagem de busca, de entendimento do meu eu, da existência, dos mistérios da transcendência, do absurdo da vida sem sentido… Enfim, é uma coisa que eu programo; é uma necessidade que eu tenho de trabalhar todo o meu processo do meu consciente se relacionando com meu inconsciente e outras cositas más. Então, quando eu escrevo, eu estou desenvolvendo um processo de pensar, e quando eu estou pensando eu já estou realizando o meu pretexto. Pra mim, quer dizer, meu corpo é o tempo todo com a literatura, porque é isso que eu estou vivendo, eu estou observando, eu estou registrando isso dentro dos meus departamentos, e tento ajustar isso pra uma composição poética, pra uma imagem musical… Então, não separo esses momentos. Eu estou no ofício o tempo inteiro. Posso estar fazendo até outras coisas, né? É como um músico: que ele pode estar fazendo um trabalho, mas ao mesmo tempo o som está na cabeça dele, ele está organizando as suas harmonias. Então é assim que eu me sinto em relação à literatura.

VIA – Alguns autores escrevem como uma necessidade existencial. Se fosse possível resumir a motivação principal do porquê escreve, qual seria?

RV  – Eu acho que eu escrevo para tentar me conhecer, entender quem eu sou, entender como é que eu me relaciono comigo mesmo, como é que eu me relaciono com o mundo, o que é que eu busco no mundo, o que é que o mundo é pra mim e o que é que eu sou para o mundo, que coisas são essas que eu chamo de sentimento e razão… Acho que é por aí.

VIA – No período de um dia, qual seria a rotina enquanto escritor?

RV  – No meu caso, a rotina do escritor começa à noite. Ao lado da cama tem uma mesinha com um bloco, já com uma folhinha branca alí, preparadinha, e caneta. Caneta dessas de ponta grossa, inclusive para poder escrever na penumbra do quarto. E esse bloco é um bloco em que eu tenho as últimas anotações, as últimas ideias, as últimas tentativas de poemas, as últimas palavras… Está tudo ali. É o meu acervo de campo. Então eu durmo com isso ali ao lado. Por quê? Porque de noite surgem muitas ideias, você pensa muita coisa, tem muitas lembranças, surgem palavras, então eu registro tudo isso. No dia seguinte, começa a rotina, você vai tomar café… Então, depois que está tudo organizado, eu faço uma leitura desse material e, aí, deixo acontecer. Não forço nada. Mas normalmente, essa leitura que eu faço de manhã vai se misturar com as informações que eu estou sendo impactado, pelas redes sociais, pelo que está passando na televisão, pelo que eu estou escutando as pessoas conversarem… E, ao longo do dia, aquela leitura que eu fiz de manhã, ela vai ser alimentada por outras ideias, por outras coisas. E sempre deixa um caldo que, mesmo que ao longo desse dia, antes de ir pra cama, eu não tenha produzido algum texto, alguma coisa, é um conjunto que eu geralmente tenho que anotar e guardar. Eu coloco assim: “em processo”, porque dali eu vou tirar alguma coisa, vou tirar uma palavra, vou tirar uma expressão, vou tirar um arranjo que eu fiz, vou tirar uma combinação, uma analogia… Quer dizer: de qualquer jeito, serve. E ao mesmo tempo, acho que é o exercício daquilo que é o fundamental para o escritor, que é o exercício de observação da vida. Não apenas dos fatos notáveis, mas observação da vida. Desde o movimento de um inseto lá no teu jardim, até um bife que está sendo fritado na cozinha.

Um lance interessante é que, nessa maneira de ajustar as coisas, trabalhar com bloco, anotações no papel…, é muito mais eficiente e te oferece muito mais recursos do que, por exemplo, o pessoal que trabalha anotando tudo direto no celular. No celular, você perde a simultaneidade, fica mais difícil você ter um olhar abrangente. Tem dias, por exemplo, que eu pego o bloquinho, aí quando é uma palavra, assim, gritante, que eu sei que é forte, eu anoto ela com letra bem grande, numa folha só; tá lá, toda destacada. Uma outra ideia, eu boto separada. Então, quando eu destaco essas folhas, eu tenho a possibilidade de mexer; entrar com uma pra frente da outra, botar aqui…, montar meu quebra-cabeça de uma maneira muito mais ágil, e que eu consigo sentir de imediato o efeito da combinação da sequência das ideias e das palavras, do que se eu fosse fazer isso no celular, como eu vejo muita gente fazer: você tem que abrir, tem que ir lá, tem que voltar… Fica mais complicado. Então vê como os processos artesanais ainda tem o seu valor…

VIA – Como fica a relação entre INSPIRAÇÃO e REELABORAÇÃO DO TEXTO ESCRITO na sua criação literária?

RV  – Eu sempre vi a inspiração como uma conspiração no inconsciente, porque, na realidade, a tua inspiração é uma reelaboração de coisas que estão lá dentro de você com coisas que entraram em você. Algumas você detecta porque reconhece; outras você não sabe. Então, isso é que é inspiração. Eu, como estou sempre procurando me entender melhor, sempre procuro desvendar o que eu posso nos processos do inconsciente, porque acho que isso faz parte do meu crescimento como pessoa, do meu aprimoramento como ser, de um modo geral. Então é assim que eu vejo a inspiração.

Eu vejo a reelaboração como uma coisa, assim, muito em função dos momentos. O importante é que seja uma reelaboração honesta, útil e artisticamente necessária. Por exemplo: pra mim não vale a pena reelaborar um poema só para ficar mais bonitinho, só pra ficar mais sofisticado, só pra ficar mais ajeitadinho formalmente, e às vezes você fazer isso em detrimento de uma palavra que é a porrada que você dá lá naquele momento. Então pra mim não vale esse tipo de reelaboração. Às vezes tem um verso de pé quebrado, que está com uma sílaba ou duas a mais, mas exatamente essa quebra, esse tropeço que ele dá, talvez seja importante para a leitura que o poeta está querendo que se faça daquele verso; está querendo que o leitor tropece exatamente ali. Então são critérios que eu acho que é a linguagem de cada um que vai determinar. Mas pra mim, eu reelaboro no sentido de aprimorar dentro daquilo que eu acho que é fundamental na minha linguagem, não pra ser obediente, seguidor dos padrões comuns, entende? Não sou um rebelde de ofício, mas não sou um cara que me vejo obrigado a fazer uma lapidação padronizada pra pasteurizar meus versos.

SOBRE A CRIAÇÃO LITERÁRIA

VIA – Seguramente, todo escritor é antes um leitor. Enquanto leitor, qual autor (ou autores) e qual obra (ou obras) considera mais relevante para ser o escritor que é?

RV  – A preferência por autor ou por autores, é um processo que vai se desenvolvendo à medida que vai aumentando o contato com a leitura. Eu sempre li muito desde cedo. Eu gostava de ler tudo. Meu pai tinha alguns romances, alguns livros de poesia e gostava muito de ler as histórias policiais, histórias de mistério… Na minha infância eu tinha muitas revistas disso daí, livrinhos que vendiam nas bancas de revista, de jornal… Minha mãe gostava de uma literatura mais romântica, mais folhitinesca. Então, gostava muito de ler os romances de Suzana Flag, que era um pseudônimo de Nelson Rodrigues, que escrevia aqueles romances bem cheios de drama… Um sucesso na época. Além disso, eu tive uma infância que foi uma infância de rádio-ouvinte, e no rádio tinha muito novela, tinha muito ar de teatro que fazia essa adaptação das peças importantes da literatura brasileira, da literatura mundial, e tinha uma informação cultural interessante nesse sentido. Mesma coisa no começo da televisão. Então esse universo da literatura fez parte do meu desenvolvimento.

Agora tem dois livros que são, assim, os livros que me marcaram muito. Eu passei por uma literatura infantojuvenil convencional. Ler Monteiro Lobato, ler os clássicos da mitologia grega adaptados, ler O Pequeno Príncipe… Esse tipo de coisa. E também li muito Júlio Verne… Li essas coisas convencionais. Era interessante como conhecimento, mas confesso que não me atraía muito. Eu ficava muito mais interessado em conhecer a literatura dos adultos, que era uma literatura que eu sacava que era uma coisa, ali, desses livros que eu estava tendo um contato mais imediato.

Então os dois primeiros autores adultos que me marcaram muito, um foi um livro, que era uma biografia de Beethoven – eu estava começando a me interessar por música e a minha mãe me deu um livro que se chamava Ludwig van Beethoven e os Sinos do Campanário e era uma história da vida de Beethoven, mas muito bem contada, com uns desenhos a ponta de lápis, assim, maravilhosos, muito realistas e muito carregados de romantismo também. Eu fiquei fascinado como é que a literatura, no caso de uma biografia, conseguia contar a vida de uma pessoa e contar de uma forma que me emocionava pela maneira que estava contando. Foi o primeiro livro que me deu esse toque. Eu fiquei emocionadíssimo.

Um pouco mais lá na frente, eu devia ter 11 anos, tinha um livro que começou a fazer sucesso, A vigésima quinta hora, que foi uma história passada na Segunda Guerra, um drama da Segunda Guerra, de um autor romeno chamado Constantin Virgil Gheorghiu. Esse livro era uma história impactante de um cara que, por conta de um cidadão que tinha interesse na mulher dele, ele foi acusado de ser judeu na Alemanha Nazista, mas o cara não era judeu, mas ele fez toda uma traJetória como se fosse um prisioneiro judeu dentro da Alemanha Nazista, ao mesmo tempo conseguindo se safar de algumas situações de uma forma muito interessante. Esse livro era proibido que a gente, os menores (que seria hoje o ensino fundamental), pegasse na biblioteca. Bastou isso pra eu ficar instigado, e eu comprei o livro. E era realmente um livro que eu fiquei encantado com a narrativa do romance, da técnica do cara de conseguir transmitir os tons de uma narrativa tão pesada, mas com uma qualidade literária muito bonita. E era uma tradução.

Aí na sequência vem dois autores que vão definir muito os meus rumos. Um foi o Jorge Amado, que eu fui ler o Capitães da Areia, e depois eu li os contos de Machado de Assis. E foi aí que eu comecei a ter vontade de escrever, cuidar melhor do meu texto com a intenção de fazer literatura. Não sabia se eu era capaz, mas senti vontade de partir pra esse exercício. Eu tinha uma intuição de que eu levava jeito e que tinha algo dentro de mim que me impelia pra fazer isso. E comecei a me dedicar a ler contos. Li muito os contistas russos e desenvolvi muito a minha literatura, me senti muito à vontade quando, na virada dos anos 60, aquela geração de cronistas (Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony…), cronistas maravilhosos… As crônicas de Nelson Rodrigues… Até a crônica esportiva era muito bem escrita. João Saldanha… Então eu lia muito. Lia Carlos Drummond de Andrade… Só estou falando de nomes que escreviam na imprensa também, né? Clarice Lispector… E eu me alimentei muito dessa fonte. E, provavelmente, na poesia, Vinicius de Moraes foi o cara que, assim…, foi o alquimista que cristalizou tudo o que eu vinha lendo, gostando, sentindo… Quando eu encontrei Vinicius e as letras dele, as  músicas e letras de Tom, eu me identifiquei e disse: é isso aí! É atrás desse cordão que eu vou correr (risos).

E à medida que eu avançava nessa caminhada, novos autores, novas descobertas iam surgindo. Kafka foi uma surpresa maravilhosa. Eu li Metamorfose, aí mergulhei na obra dele e comecei a ler O Processo, O Castelo… Os romances dele que eram complicadíssimos, eu não entendia nada, mas avançava, lia… Descobri Mark Twain (As aventuras de Tom Sawyer)… E outros autores eu ia conhecendo e me encantava. Neruda, que foi um chamamento pra poesia maravilhoso – Florbela Espanca –, e por aí vai… Não parei mais dessa mistura de buscar conhecer o que eu ouvia falar ou então o que eu via um fragmento e corria atrás, e fiz essa formação variada o tempo todo.

Na literatura brasileira eu tive um momento muito especial, quando eu conheço Graciliano Ramos, vou ler Vidas Secas, vou ler São Bernardo… Logo em seguida conheço Guimarães Rosa; comecei pelos contos de Guimarães, Sagarana. Eu fiquei maravilhado com o trabalho de linguagem dele, o jogo que ele faz com as palavras, a mistura que ele faz criando realmente uma nova linguagem… Aí pronto! Quando chego em Guimarães Rosa, eu vejo que ainda tinha muita coisa a aprender, a desenvolver pra poder chegar no nível de uma literatura realmente criativa, que merecesse ser reconhecida como literatura.

Ao mesmo tempo, na literatura mundial, especialmente na literatura americana, eu me interessei muito pela obra do Ernest Heming, John dos Passos, que tá la atrás… Li muito aquela Geração Beatnik, o Jack Kerouac. Essas coisas todas me influenciaram muito. Os autores latino-americanos que chegavam aqui. O Vargas Llosa… Era uma rapaziada que estava começando, mas que eu me interessava demais. E é esse o caminho.

Na poesia eu nunca tive um papa da poesia; eu sempre fiz um caldeirão. Eu sempre gostei de um pouco de grandes poetas de épocas diferentes; com eles é que montei o meu catálogo de referências. Então tem coisas maravilhosas dos sonetos de Camões, Shakespeare que eu gosto muito… Alguma coisa lá atrás de Dante que é maravilhoso. Aí eu venho para os franceses do final do século XVIII, literatura portuguesa do início do século XX que também tem grandes poetas… Misturo alguma coisa do Modernismo, da primeira fase do Modernismo brasileiro, com a geração do Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira… Muita coisa dos poetas populares nordestinos e daqueles grandes poetas nordestinos que souberam beber na fonte popular… Tem coisas demais. Aí é difícil dizer.

VIA – Da primeira publicação até hoje, quantas obras possui?

RV  – Amor tecido nas nuvens é o meu primeiro livro, esse que eu estou lançando agora. Não tenho nenhum anterior. Tenho participação em muitas antologias, muitos poemas publicados soltos e lançamentos literários, em sites, blogs, redes sociais… Mas livro, esse é o primeiro.

VIA – Em qual gênero literário se situaria a parte principal de sua criação literária e que experiências possui em relação aos outros gêneros literários?

RV  – A poesia que eu faço eu não sei enquadrar em termos de estilo… Eu não coloco uma classificação. Acho muito difícil fazer isso, especialmente no que se produz hoje, nessa Era em que os processos, antes de você criar e de comunicar as suas expressões, passam por mudanças tão rápidas e intensamente transformadoras. Então eu diria que a minha poesia é poesia do Ramayana.

VIA – Quando escreve ficção, ao iniciar, a narrativa está praticamente pronta ou essa tem vida própria, surpreendendo o próprio autor, só se conhecendo o enredo e o fecho no próprio processo de criação?

RV  – O meu processo de escrever, ele não se inicia sempre da mesma forma. Há ocasiões em que eu tenho uma ideia estruturada, ainda que não seja completamente acabada, mas ela já nasce como um corpo inteiro. Então eu começo a escrever, vou moldando e vou fazendo, de acordo com o andamento da escrita, um trabalho que vai ficando elaborado até chegar na sua condição final. Outras vezes eu tenho, assim, uma intuição de ideia, mas nem sei exatamente o que é que eu estou querendo dizer, mas brota, nasce, e aí vem o meu apego e o meu amor pela palavra. Quer dizer: a palavra – os significados que eu vou atribuindo à palavra – vai conduzindo o desenvolvimento do texto, e eu não sei muito bem o que é que é, mas eu vou seguindo. Uma palavra puxa uma ideia, uma ideia puxa outra ideia, que puxa outra palavra que vai combinando ou se harmonizando dessa ou daquela forma, e aí vai surgindo a obra. Outra vezes eu tenho uma vontade de escrever, nem sei se exatamente o que é que é, não sinto nenhum sinal, e vou colocando ali, como se fosse um método de associação livre. Eu vou escrevendo algumas coisas, aí dali eu vou extraindo, vou fazendo uma filtragem, e aí quando eu vejo tem o início de alguma coisa. Às vezes eu desenvolvo logo, às vezes eu guardo esse material… Aí lá na frente surge uma outra ideia, eu vou no meu caderninho de anotações, vejo lá alguma coisa que eu já tinha elaborado… De repente encaixa com aquela ideia que eu estou trabalhando, e aí vai… Então não sei exatamente como que isso vai terminar, mas acaba tendo um resultado que me agrada. E o mais importante: eu reelaboro a minha escrita o tempo todo. Eu acho que escrever é você reescrever sempre. É uma coisa que eu captei em Graciliano Ramos. Graciliano Ramos escrevia, reescrevia, reescrevia… E ia enxugando o texto dele até ficar no ponto exato. Eu faço muito isso; não só com a escrita, mas com as próprias ideias. Às vezes eu pego um poema que já está feito, que fiz há algum tempo, jogo fora algumas estrofes, aproveito uma, misturo com a de outro poema e aí acaba dando uma coisa interessante. Então, é esse o meu processo.

VIA – Como vê a literatura em tempos de Internet, redes digitais, ChatGPT e outros aplicativos de Inteligência Artificial?

RV  – Eu acho que essas novas formas, essas coisas das redes digitais, essas novas possibilidades tecnológicas que hoje são utilizadas pra construir texto, nenhuma delas vai superar o que pra mim é essencial, que é a qualidade do pensamento humano, é a ideia; e a ideia é ligada ao sentimento, coisa que eu acho que a inteligência artificial nunca vai conseguir fazer com tanta intensidade, com tanta profundidade quanto o ser humano é capaz. A máquina, esses sistemas todos, eles armazenam informação, podem cruzar conhecimento, mas eles não têm a emoção criativa; eles não têm aquela coisa que é essencial, que é aquela carga ancestral que a humanidade tem dentro da sua mentalidade, pra botar pra fora através de um processo da escrita. Então acho que nunca vai ser superada a escrita humana. Eu acho que podem ser feitas histórias interessantes, enredos criativos, coisas assim, experiências muito espetaculares, mas aquela coisa que contagia o leitor, porque ele identifica naquilo que está lendo uma experiência de vida, uma vivência com a qual ele, leitor, possa se conectar pela imaginação ou pela analogia com as suas próprias situações de vida, eu acho que isso só outro ser humano é capaz de produzir.

VIA – Qual o maior problema para a poesia e a ficção, em uma palavra, para a literatura hoje?

RV  –  Não considero que exista assim um grande problema para a poesia, para a ficção e para a literatura hoje. Acho que a arte literária, como a arte em geral, mas especialmente as literárias é a reprodução dos sentimentos de uma época, de uma sociedade, de uma maneira de viver, de um código de convivência, enfim, de uma cultura, que é a soma de várias culturas. Então ela sempre está, de uma certa forma, reproduzindo, refletindo o mundo, que  continua girando, a vida continua acontecendo, a sociedade continua agido assim e assado e a literatura está aí mostrando isso. Então, eu não vejo essa essa crise. Acho que as linguagens, as formas de você expressar a sua criatividade narrativa através de palavras, seja num formato ou em outro, poesia, conto, romance, ou qualquer outro que venha estar surgindo. Acho que isso independe dos avanços tecnológicos, das novas maneiras que vão surgindo, facilitando. Exite a mudança cultural e estamos assim no momento de uma crise de civilização, mudando radicalmente os padrões de tudo que diz respeito ao funcionamento da sociedade humana.  Mas acho que as letras estão acompanhando isso, tanto em forma como em conteúdo, se apoderando das novas maneiras de significar e representar a palavra, seja nas instalações, nas galerias de arte, em que a palavra, a composição poética, faz parte da obra, estruturada pelo artista com outras informações audiovisuais, seja nas redes sociais, na rapidez com que essa criação está circulando e está sendo gerada. Isso aí é o momento, não, digamos, um problema, uma crise.

Acho que nessa atmostera de mudanças e de mudanças radicais, surgem novas oportunidades, surgem muitas dificuldades, algumas práticas são praticamente sepultadas. Mas acho que existe o avanço contínuo, permanente, acho que o artista, seja escritor, é sempre um malabarista que vai se equilibrando com as mudanças que o  tempo vem trazendo. Acho que existe, assim, digamos, recolocação, uma resignificação do que seja uma relação entre a obra escrita e a obra lida. Acho que se ampliam as maneiras de leitura,  acho que isso modifica inclusive as visões, a busca do leitor, para os conteúdos em que se interessa ler, existe a mudança dos suportes, existem várias coisas, mas criam outras facilidades, por exemplo, um autor pode editar,  publicar e fazer circular sua obra, seja ela no formato digital, seja no tradicional, impresso em papel. Não vejo crise, não consigo entender isso como um problema.

As facilidades de organização e realização da escrita, que surgem com os novos meios tecnológicos, a inteligência artificial, quer dizer, não vai matar nunca a criação literária. Hoje todo celular tem uma câmera de vído, todo mundo tem um celular, e isso não acabou com o cinema. Isso pode criar novas funções, pode mudar a estética do cinema, mas não vai acabar com o cinema. Então, a mesma coisa acho que o autor, a criatividade humana, através do texto, sempre vai ser protagonista, sempre vai ser o principal, nada vai conseguir se igualar a isto.

VIA – Em qual (ou quais) projeto(s) literário(s) está se dedicando no momento?

RV  – Eu comecei a minha vida adulta como profissional de texto. Trabalhei em editora, fui jornalista, fiz teatro e, sempre ligado ao texto, depois comecei a lecionar regularmente Literatura e Língua Portuguesa. Então sempre escrevi, e sempre, sempre, sempre meu eixo contínuo, permanente, foi a poesia. É o que eu nunca deixei de fazer. Mas escrevi contos, escrevi peças de teatro… Inclusive aqui em Ilhéus eu tenho uma produção, tenho algumas peças, e nunca tentei um romance; nunca me interessei por isso. Mas sempre fiz poesia. De vez em quando fazia um conto – até hoje escrevo contos vez ou outra –, e fiz teatro; tenho até, inclusive, alguns projetos ainda a realizar nessa área. Mas poesia que é o permanente na minha criação.

O ciclo de publicações que iniciei agora com “Amor tecido nas nuvens” tem ainda mais dois livros. Um outro livro de poesia que tem como título “Então eu grito”. E um livro de contos. Estou reunindo contos, mas não fechei completamente o projeto. Esse “Então eu grito”, na realidade, era o primeiro livro que estava organizando. Na coleta de poemas, na separação do material para montagem desse livro, fui  separando os poemas de amor,  achava que eram conflitantes com a proposta de “Então eu grito”, que é um livro mais político, mais filosófico, inclusive resgato uma parte de minha produção lá nos anos 70, poemas na época da luta contra o regime militar, uma época cheia de grandes tranformações. Então os poemas de amor achava que ficavam um pouco meio deslocados. Então comecei a separar. Quando comecei a separar, a equipe que estava trabalhando comigo na montagem desses livros disse que isso vale a pena fazer um bloco separado. E a gente decidiu fazer um livro específico com esses poemas. É um livro mais fácil de fazer. Isto porque o livro “Então eu grito” tem muitos desenhos meus, muitas ilustrações, que dão assim uma ênfase ao discurso poético, então uma edição mais complicada. Esse que era apenas reunir os poemas de amor, a gente colocou na frente, preparou e estamos agora preparando os outros dois.

Outubro de 2023

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