A Editora Via Litterarum – Via entrevista a pedagoga, escritora e professora JOSANNE MORAIS-JM, abordando algumas questões com vistas à compreensão acerca do ato de escrever e sobre a criação literária propriamente dita.
SOBRE O ATO DE ESCREVER
VIA – Como e em que momento ou circunstância se percebeu como LEITOR e que a leitura faria parte de sua vida?
JM – Quando minha mãe se percebeu grávida de mim, comprou uma coleção de histórias infantis chamada Meu Amiguinho. Quando nasci, recebi este presente que contava com 15 volumes. Ela lia para mim incansavelmente, fazia a leitura interpretando os personagens o que tornava aquele momento mágico e precioso. Depois, aos poucos, a medida em que crescia, novos livros foram chegando e povoando o universo da sala da nossa casa e da minha vida. Já nas primeiras séries escolares, tinha horário reservado para atividades e para leituras que sempre aconteciam ao cair da tarde quando estávamos no quintal, curtindo a sombra da mangueira. Essa rotina de leituras foi construindo em mim uma necessidade de fazê-las todos os dias.
VIA – Como e em que momento ou circunstância se percebeu como CRIADOR LITERÁRIO ou AUTOR e que escrever faria parte de sua vida?
JM – Ainda criança. Era impossível ler e não escrever algo representativo da leitura. Minha mãe exigia a escrita, exigia que colocasse no papel o que a leitura despertou em mim e, aos poucos, o hábito de escrever foi se tornando cada vez mais forte. Lembro-me que certa vez, em brincadeiras de criança, gostava de imitar os jornalistas e apresentava o Jornal Nacional. Me atrevia a escrever as matérias com assuntos que ouvia nos telejornais, e gostava de imitar os apresentadores. Até que, um dia, me percebi com a cabeça muito cheia de ideias e iniciei a escrita de poesias que nunca me atrevi a publicar considerando que careciam de estética mais apurada, e depois, a escrita de livros porque queria expor os pensamentos numa narrativa tensiva que desse vazão a muitas significações e interpretações.
VIA -Hoje, em termos de ocupação do tempo dedicado ao trabalho, qual o espaço ocupado pela literatura?
JM – Inicio meus trabalhos às 7:30 da manhã e, muitas vezes, vou até às 21h ou 22 horas mais ou menos. Sem dúvida, tenho o tempo recheado de afazeres acadêmicos entre estudar os teóricos que trabalho na psicologia, na psicanálise, preparar as aulas, escolher os melhores textos ou livros para indicar aos alunos, orientar monitorias…
Como tenho hábitos de leitura e escrita talhados desde a infância, nunca deixo de fazê-las, e o espaço destinado a leitura literária, tem horários definidos porque costumo reservar os sábados à tardinha e os domingos pela manhã.
Assim consigo estabelecer a rotina e pensar melhor, refletir mais cuidadosamente sobre o que estou lendo. Às vezes, essa rotina é quebrada, mas nada que retire de mim, o espaço precioso e necessário das leituras.
VIA -Alguns autores escrevem como uma necessidade existencial. Se fosse possível resumir a motivação principal do porquê escreve, qual seria?
JM – Quando começo uma escrita, quero conclui-la como se a conclusão me dissesse ou me trouxesse a certeza da infinitude. Parece estranho dizer isto, não é? Afinal, conclusão e infinitude, são caminhos opostos. Mas na conclusão, me percebo inconclusa, incompleta, e isto tem relação com minha necessidade de perceber-me sempre em construção, compreendendo que o sentido de vida perpassa pelas estradas do vir-a-ser. Ao concluir uma escrita, penso que algo a mais deveria ser dito, não pelo amor ao excesso de palavras, mais pela necessidade de trabalhar a riqueza de detalhes, porque é no detalhe que a essência se revela. Gosto de descrever a cena, de perceber os contornos que a cena produz, de imaginar o tom das palavras, o sentido do significado.
VIA -No período de um dia, qual seria a rotina enquanto escritor?
JM – Sou uma pessoa observadora e refletiva. Retiro frases de conversas cotidianas, de situações corriqueiras, de cenas de filmes, de momentos inesperados. E eu posso extrair pensamentos que podem dar vida a um capítulo de livro das mais variadas maneiras: de ‘simples’ conversas ao sabor de um cafezinho, de um atravessar de rua em dias movimentados, das madrugadas vistas através da janela do meu quarto, de um acontecimento na fila do banco, do cheiro de um chá posto à mesa… Gosto das subjetividades porque nelas habitam essências, particularidades e traduzir estas nuances para personagens ou mesmo imaginar o comportamento que cada uma poderá ou deverá ter frente a dada situação, é algo que me movimenta intimamente.
VIA – Como fica a relação entre INSPIRAÇÃO e REELABORAÇÃO DO TEXTO ESCRITO na sua criação literária?
JM – Aqui considero que algo interessante acontece comigo. Certo dia, estava deitada no sofá, quando minha mãe me perguntou: “Filha, não vai ao trabalho hoje?” E a respondi: “Hoje começa meu período de férias”. Minutos depois, senti uma vontade incontrolável de escrever um livro e, à medida que organizava as coisas a mesa, me veio por inteiro: 9 mulheres para 8 janelas: quando vidas reservam silêncios – e apenas deixem os dedos bailarem nas teclas e o livro ficou pronto em 8 dias. Em outra ocasião, minha mãe me disse: “Josy, Hosana faleceu!”. Tratava-se se uma senhora muito amiga de nossa família. Eu imediatamente levantei-me e perguntei: “Mãe, vamos ao velório?” E minha mãe respondeu: “Sim. Irei me arrumar para irmos”. Enquanto minha mãe se arrumava, peguei uma folha ofício e fiz o esboço do que seria HOZANNAH: QUANTAS LINGUAGENS CABEM EM UMA MULHER?. Esboço feito, saímos para o velório e, na volta para casa, me prostrei a frente do notebook e iniciei a digitação do livro que em uma semana ficou pronto. Em ambos os casos, não se trata do tempo em que ficou pronto, se trata de como as ideias chegam a minha mente e como os meus dedos as materializam.
SOBRE A CRIAÇÃO LITERÁRIA
VIA -Seguramente, todo escritor é antes um leitor. Enquanto leitor, qual autor (ou autores) e qual obra (ou obras) considera mais relevante para ser o escritor que é?
JM: Minhas leituras mais pontuais são: Carlos Drummond de Andrade: A Rosa do povo; Alguma Poesia; Amar se Aprende Amando; Amor, Amores; As Impurezas do Branco; Boitempo; Claro Enigma; José; Sentimento do Mundo…; em Cecília Meireles: A Rosa; Batuque, samba e Macumba; Canções; Espectros; Mar Absoluto; Nunca mais; O Menino Atrasado; Retrato Natural; Viagem…; em Clarice Lispector: A Maçã no Escuro; Água Viva; Felicidade Clandestina; Laços de Família; Perto do Coração Selvagem; Um sopro de vida; Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres…; em Florbela Espanca: A minha dor; A vida e a Morte; Eu…; Fanatismo; Lágrimas ocultas; Neurastenia; Oração de joelhos; Torre de névoa; Vaidade…; em João Guimarães Rosa: Ave, Palavra; Com o Vaqueiro Mariano; Estas Estórias; Grande Sertão: Veredas…; em Mário Quintana: A Cor do Invisível; A Rua dos Cataventos; Esconderijos do Tempo; Eu Passarinho; Preparativos de Viagem; Sapato Florido…; em Zélia Gattai: Anarquistas Graças a Deus; Jardim de Inverno; Pássaros Noturnos do Abaeté; Senhora dona do baile; Um chapéu para viagem…; em Machado de Assis: A mão e a luva; Casa Velha; Falenas; Americanas; Helena; Papéis avulsos; Páginas recolhidas; Ressurreição…; em Jorge Amado: Capitães da Areia; Dona Flor e Seus Dois Maridos; Jubiabá; Mar Morto; Terras do Sem-Fim; Tieta do Agreste…; em Adonias Filho: As velhas; Corpo vivo; Noites sem madrugada; Servos da Morte…; Em Ariano Suassuna: Auto da Compadecida; O casamento suspeitoso; O castigo da soberba; O Rico Avarento; Os homens de barro; Uma mulher vestida de Sol….
VIA -Da primeira publicação até hoje, quantas obras possui?
JM – Cinco: Professor e aluno motivado: isto faz a diferença (2007) e PROFESOR Y ALUMNO MOTIVADO: esto hace La diferencia, bilíngue português e espanhol (2008); 9 mulheres e 8 janelas: Quando vidas reservam silêncios (2012); Hozannah: Quantas linguagens cabem em uma mulher? (2013); “Um criador, muitas criaturas: Representações da mulher na obra musical de Chico Buarque” (2021); e PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN:UMA ANÁLISE DOS OLHARES DA FAMÍLIA NO ESPELHO DA CONSTRUÇÃO COTIDIANA (2023).
VIA -Qual obra considera a principal?
JM – Difícil responder porque, para mim, cada ‘obra’ veio em momentos muito específicos de minha vida. Professor e aluno motivado: isto faz a diferença, chegou no momento inesperado através do convite de Fabiana Kauark – que foi minha aluna e estava disposta a escrita deste livro; 9 mulheres e 8 janelas: Quando vidas reservam silêncios, chegou para mim como um presente, como a possibilidade de início de organizar as ideias que chegaram de maneira absoluta – digo absoluta, no sentido de que a narrativa veio de única vez, cada detalhe apareceu pronto em minha mente; Hozannah: Quantas linguagens cabem em uma mulher?, chocou-me pela riqueza dos detalhes e estes detalhes apareceram em minha mente de maneira tão forte que meus dedos tiveram dificuldade para acompanhar a rapidez das ideias; “Um criador, muitas criaturas: Representações da mulher na obra musical de Chico Buarque”, chegou na forma de um convite do meu amigo e colega Prof. Samuel Mattos – quando ele me apresentou o projeto, em poucos dias, tinha construído as análises dos comportamentos das mulheres a partir das músicas que compõem o livro; PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN: UMA ANÁLISE DOS OLHARES DA FAMÍLIA NO ESPELHO DA CONSTRUÇÃO COTIDIANA, chegou para mim, numa madrugada chuvosa, enquanto pela janela da sala, ouvia o silêncio da rua. Não sei o porquê me lembrei do filme ‘Precisamos falar sobre o Kevin’ e senti necessidade extrema de escrever sobre este assunto…
VIA -Em qual gênero literário se situaria a parte principal de sua criação literária e que experiências possui em relação aos outros gêneros literários?
JM – O gênero narrativo porque se refere a textos que contam histórias e traduzem subjetividades e plurissignificativos. Nos demais gêneros, aprecio a poesia, o conto e a crônica.
VIA -Quando escreve ficção, ao iniciar, a narrativa está praticamente pronta ou essa tem vida própria, surpreendendo o próprio autor, só se conhecendo o enredo e o fecho no próprio processo de criação?
JM – No caso de Professor e aluno motivado: isto faz a diferença, não existiu final previsto anteriormente, as análises teóricas foram acontecendo até a satisfação das autoras. Em 9 mulheres e 8 janelas: Quando vidas reservam silêncios, e em Hozannah: Quantas linguagens cabem em uma mulher?, as narrativas chegaram prontas, pareciam prontas dentro de mim, esperando apenas que as transpusesse para o notebook e, quanto a isto, não sei explicar o porquê que isso acontece comigo. No caso de Um criador, muitas criaturas: Representações da mulher na obra musical de Chico Buarque”, e de PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN: UMA ANÁLISE DOS OLHARES DA FAMÍLIA NO ESPELHO DA CONSTRUÇÃO COTIDIANA, não tinha final definido porque tratam-se de análises de pontuais comportamentos dos personagens existentes anteriormente – isto é, os personagens não foram criados por mim, mas sim, habitam na obra musical de Chico Buarque e no filme/livro que trata sobre Kevin.
VIA -Como vê a literatura em tempos de Internet, redes digitais, ChatGPT e outros aplicativos de Inteligência Artificial?
JM – Os amantes da literatura gostam mesmo é de pegar, sentir, experimentar a leitura a partir do livro concreto. A realidade da internet e das redes sociais tem seu espaço assegurado no mundo dos não-lugares. Estar em contato com o livro, na sua forma física, faz com que, muitas vezes, o sujeito seja empurrado a reagir e a interagir não apenas com a narrativa apresentada, mas também, com a construção de diálogos capazes de analisar as diversas interpretações advindas da leitura. O mundo da internet e das redes sociais, mundos mais fluidos e mais líquidos, apresentam duas situações: por um lado, podem aproximar pessoas e assuntos variados, e, por outro lado, podem promover a existência do sujeito que perde ou enfraquece o sentido de estar junto e de compartilhar diferentes saberes, conceitos, argumentos deixando prevalecer o isolamento psicossocial.
VIA -Qual o maior problema para a poesia e a ficção, em uma palavra, para a literatura hoje?
JM – Reconhecimento.
VIA -Em qual(ou quais) projeto(s) literário(s) está se dedicando no momento?
JM – Estou me dedicando a escrita de mais um livro. Ele está se desenhado em minha cabeça. Como não será um romance, estou na fase de buscar o sentido para cada detalhe da análise. Em outro momento, estarei mais bem preparada para falar com mais propriedade.