Em cada um destes contos o foco narrativo muda inesperadamente de lugar e a linguagem caminha inquieta num ir e vir de ciranda. É quase sempre assim, e a pegada do narrador nunca se repete. Constante apenas, mas sem monotonia, é a segurança com que este prestidigitador de realidades desenvolve cada uma destas extraordinárias páginas. São narrativas de um mágico que não descansa na mágica, que não se acomoda, que vive em desassossego, porque duvida e gosta, curte refazer caminhos, testar outros desenhos, outras perspectivas.
Ora como Plínio Marcos, dá voz ao despossuído como quem colhe a flor da revolta para criar, com feroz e esganiçada verve, a rouca e hostil poesia que o pária da sociedade faz sobrenadar em “fome e sede amontoadas”. É repórter nessa hora, um repórter da cidade, que nunca carrega nas tintas, porque trabalha com humor e ironia, eventualmente com sarcasmo, toda a cor local e as nuances de um cenário alternativo, de uma outra Bahia, não aquela para inglês ver.
Sem esquecer que há também em cada um destes contos uma impressionante liberdade imaginativa, algo que poucos autores, os mais genuínos, conseguiram alcançar no gênero. E são de fato muito raros esses autores que conseguiram fotografar o espaço urbano sem camufl agens, sem clichês, com as lentes hiperbólicas de uma literatura que não se engana e nem pretende enganar ninguém. Uma literatura em que a força das imagens, cortantes e insólitas, e os consequentes fundos relevos e recortes de ambientes e personagens se destacam antes como o positivo da fotografi a, quando o negativo seria a visão mastigada, agradável,que não denuncia.
Como fi zeram e fazem contistas hoje clássicos como Dalton Trevisan, Samuel Rawet, Rubem Fonseca, João Antonio e Hélio Pólvora, em termos de qualidade as referências mais próximas do autor de Ladeiras, vielas & farrapos, que, como seus antecessores, procura equilibrar, de maneira contundente e exata, a expressão popular às fontes algo eruditas do gênero.
Isso tudo, como se sabe, é desafio imenso depois do que tivemos na primeira metade do século 20 com António de Alcântara Machado e Guimarães Rosa. Mas é assim porque assim escreve este novo contista brasileiro que passamos a conhecer pelo nome de Tom Correia.
Autor: Tom Correia
Nasceu em Salvador. Jornalista, iniciou a carreira literária em 2002, quando ganhou o Prêmio Braskem com Memorial dos medíocres. Publicou Sob um céu de gris profundo (2011) e participou de diversas coletâneas, com destaque para As baianas (2012) e 82: Uma copa, quinze histórias (2013). Integrou ainda a antologia Wir sind bereit (2013), a convite da editora alemã Lettrétage. Em 2014, fez parte do 2º volume de Autores baianos: um panorama, publicação em quatro idiomas organizada pela Fundação Cultural do Estado da Bahia.