O estofo literário na crônica retira-lhe a condição estrita de texto jornalístico quando então a linguagem objetiva procura informar o fato com precisão e rapidez. Com linguagem concisa e útil, o texto de jornal pretende aproximar do evento os seres humanos onde quer que estejam, para que tomem conhecimento do que acontece no mundo. A crônica ameniza a notícia ou o episódio levado ao leitor sobre a vida diária, de forma que sua atividade subjacente na escrita o cative ou encante com sutilezas e imprevistos.
Na crônica de humor, o autor modifi ca com graça a comédia do cotidiano. Na de ensaio, tece crítica ao que acontece no sistema organizado, detectando falhas nas relações sociais e de poder. Na filosófi ca logra extrair refl exões sábias a partir de um fato. Na jornalística enfoca aspectos particulares de notícias ou fatos, que podem acontecer na área esportiva, policial e política ou em outros campos da atuação humana. Na poética toma emprestada a palavra ao sonho para dizer da vida com a sua face que ilumina o ser.
Segundo o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade, de notícia e não notícia faz-se a crônica. Daí se pensar que pode ser atemporal, se o assunto, extraído da realidade exterior sob bases sentimentais, revestir-se de arcabouço literário, servindo para ser lido tempos depois desgarrado do seu contexto e ainda assim causando emoção. Sempre dando tratamento agradável ao assunto, que descreve, a crônica, de argumento ou digressiva, aviva o evento com graça, tornando-o poético pelo eu lírico que tudo recorda. Anota com o relógio do coração. Fundamenta a ideia que na poesia da solidão é compartilhada com os que irão fruir o prazer da leitura, os que não se colocam à distância, em razão da disposição anímica que alimenta a cumplicidade.
A crônica no seu arcabouço de escrita híbrida, entre o jornal e o literário, não apresenta limites muito definidos. Usa a oralidade na fala dos personagens e o coloquial na escrita, a sua linguagem é simples. Alguns querem que seja como poesia espontânea no seu discurso em forma de prosa, outros acham que deve ter a feição de uma história curta. De uma maneira ou de outra, não deve desprezar a linguagem amena a possibilitar o seu encantamento, nem o modo que seduz e torna o leitor cúmplice da beleza quando emerge em devaneios ou digressões anímicas.
Propensa a retirar o assunto do factual, o espaço que melhor achou a crônica para morar e se expandir foi o jornal. Rápida no que descreve, o jornal foi o lugar que escolheu para demonstrar leveza na informação do fato e a um só tempo produzir na escrita ágil aquela sensação que os ingleses chamam de human interest story.
Os entendidos acham que a crônica é um subgênero literário, não possui expressão signifi cativa no sistema verbal, se comparada à poesia e ao conto. Nenhuma literatura se faz grande com livros de crônicas, argumentam. Não possui meios para que a razão e a emoção aprofundem a leitura do mundo. Não tem o lugar e o espaço do texto que se serve de olhares oblíquos para focar a problemática existencial do ser humano e a crise de uma sociedade exaurida de valores e sentidos. Mas não se pode deixar de reconhecer é que a crônica quando escrita por boas mãos contribui para a imaginação e a transcendência do mundo.
Quem toma conhecimento do livro Os olhos azuis de D. Alina e algumas crônicas (1985), de Fernando Leite Mendes, publicado postumamente, há de perceber que ali está presente um cronista do melhor nível, que pode figurar, sem favor, no patamar de nossos melhores do gênero.
Essa percepção de que a crônica corre no sangue de Fernando Leite Mendes vai se confi rmar mais uma vez quando os selecionadores dos textos que compõem O gigante e a bicicleta e outras belas crônicas tiveram a oportunidade de separar os melhores entre os tantos que foram publicados no “Correio da Manhã”, no período compreendido entre 1964 e 1965, na revista “O Mundo Ilustrado” entre 1953 e 1954, e na revista “Manchete”, em 1973.
A crônica assume de novo o chão da memória, numa linguagem que leva sempre a um encantamento. Não importa o tema, a palavra integrada de sentimentos belos está presente em cada momento, tornando o assunto mais cativante. Os personagens, como o pai de santo, o garçom Ludwig, a rodomoça, prendem pela humanidade que revelam. Na retina de quem se extasia com o que descobre repercute uma voz comovente, cheia de poesia e de afetividade, como no episódio para com o morto ou de solidariedade para com a velha senhora despejada. Impressiona na saudade evocada com os gestos do pai nos dias coloridos vividos no interior.
Baiano de Ilhéus, Fernando Leite Mendes aprendeu a escrever com Dona Aline e a rezar com Dom Eduardo, o bispo que levava a palavra santa aos nativos na mata fechada. Às vezes, a crônica nas mãos desse baiano bom de escrita e de oratória tem jeito de poesia, como “O palhaço o que é? e “O rei na estrada”, às vezes se mostra na estrutura de um conto curto, como em “O menino e a girafa” e no fantástico “O besouro subversivo”. O detalhe subjacente sempre amplia o assunto, cria uma atmosfera de sonho, que vale mais do que está escrito. Tudo é rápido, dá prazer e faz pensar, fi ca sempre a impressão do que perdura no coração.
Na certeza de que estamos resgatando um expoente da nossa crônica, que nos brinda pela segunda vez com textos de fala solidária, que pulsam com ternura, esperança e humildade, entregamos ao leitor essa luminosidade que faz de Fernando Leite Mendes um exímio e inspirado criador de pequenos discursos leves. Nessa, aparentemente fácil, arte de escrever com o coração.
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