Há certa concordância, em meio à crítica literária, a respeito do mergulho interior como característica dominante na obra romanesca de Clarice Lispector. O professor Ewerton de Freitas, nesta excelente e original pesquisa sobre os romances da autora de Perto do coração selvagem, toma a liberdade de apontar elementos singulares recorrentes nessas narrativas de Clarice que, a meu ver, funcionam como bases de composição do complexo interior de suas personagens principais. Freitas vasculha página a página os sete romances analisados neste seu trabalho acadêmico, demonstrando que o campo e a cidade, com seus temas e semas particulares, amalgamam-se no traçado das narrativas e no todo subjetivo das personagens dessas obras, dando a elas a temperatura conflitiva de profundidade tantas vezes percebida em Lispector. O resultado da investida de Ewerton de Freitas é a saborosa e bem talhada construção de um novo olhar sobre a prosa clariceana.
O que se vê no sofisticado périplo empreendido pelo professor é a massa de elementos dos campos semânticos “cidade e campo” ora se rivalizarem, ora se igualarem em sentidos aceitáveis ou não, traçando os fios dos destinos das personagens seja no âmbito do espaço e da ação das narrativas, seja na conformação subjetiva das personagens. Como a obra de Lispector é para dentro, faz-se de dentro para fora, o fora não escapa nesse dentro intenso com que a autora de A paixão segundo GH, manuseando temas e semas das duas ordens semânticas, pavimenta seu lastro literário. Lastro este visceral e conflitivo, denso e quase sempre inconclusivo, como a própria vida ardendo nas carnes pulsantes do dia a dia.
Como Clarice é uma exploradora da alma, o campo e a cidade se avolumam, nesta obra crítica, fazendo-se em metáforas da angústia inquietante que toma seus personagens. Leitmotiv, quem sabe, de nem mais, nem menos que apenas ser no mundo. Conforme assevera o próprio autor deste livro: “cidade e campo tanto fazem contraponto quanto se complementam”. De certo modo, o mal-estar e as perspectivas alentadoras ou não das personagens dessas narrativas se conformam a partir da massa de imagens oferecida pelas vivências ambíguas no campo e na cidade ou apenas vívidas em um ou outro desses lugares, porém presos à busca do lugar que lhes falta, seja campestre ou citadino, a partir de uma perspectiva imaginária, não raro corroída pela dureza do real ignorado.
Em sua obra, mesmo que composta de ensaios independentes sobre sete romances, Freitas o tempo todo entrelaça as nuances temáticas das narrativas, traçando um amplo painel do conflito campo/cidade que equaciona as ações das personagens e conduz a composição dos seus conflitos internos. Por esse viés, para alguns personagens que, no campo, se sentiam oprimidas e cerceadas, de acordo com Ewerton de Freitas: “A cidade que a um tempo se afigura como libertação se mostra aos personagens como limitação seja porque a força de pedra e concreto de sua existência devasta o campo. Seja porque as próprias personagens vivem pelo seu liame com o campo”.
Para Freitas, o espaço rural e o urbano não necessariamente se opõem nos romances analisados, eles se plasmam como experiências inalienáveis da constituição dos sujeitos personagens e consequentemente do fio narrativo que percorrem ao longo de suas histórias. As obras de Clarice Lispector ganham mais quando se observa o relevo dialético e desassossegado que temas e semas do campo e da cidade proporcionam à medida em que são tensionados habilmente pela autora, metaforizando a matéria e a essência de que são forjados seus personagens. Foi um prazer poder ler Clarice pelo viés perspicaz elaborado em O campo e a cidade nos romances de Clarice Lispector. Obra de raro valor para amantes da Literatura e para pesquisadores.
Autor: Ewerton de Freitas
Doutor em Literaturas em Língua Portuguesa, com estágio pós- -doutoral em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor do curso de Letras da Universidade Estadual de Goiás (UEG/Anápolis) e do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais do Cerrado (Teccer/UEG). Editor dos periódicos Via Litterae e Revista Nós. Membro do Comitê Interno de Pesquisa da UEG. Líder do Grupo de Pesquisa ERUDIO. Bolsista do Programa de Incentivo ao Pesquisador (PROBIP) da UEG– Universidade Estadual de Goiás.